Escrito por Wilson Júnior
Editado por Vanessa Guedes
Preparado por Luiza Cantoni
A visão da Casa Grande quase foi demais. Dora levou a mão ao peito, temendo que aquela fosse a dor derradeira. Não foi. Seu coração, apesar de envelhecido, era forte. Como muitos diziam, tinha uma pedra no lugar do coração. Mas a pedra batia a lembrança dos dedos do filho se agarrando ao seu corpo.
Parou no primeiro degrau do alpendre. No topo da escada estava a Sinhá Menina. Dora reconheceu-a pelos olhos. Eram astutos na infância; maliciosos agora, olhos de mulher formada. Os deles eram tristes, rancorosos até.
— Sinhá Menina, lembra de mim? Sou Doralice. Trabalhei na sua casa quando jovem. Você ainda era uma pequenina.
A mulher não se deu nem ao trabalho de disfarçar o nojo.
— Não me chame disso, sou a senhora desta casa. Não lembro, não. Vai saindo que as pretas da casa estão ocupadas com as coisas da festa de Natal, não têm tempo pra jogar conversa fora.
O converseiro juntou gente. Na multidão, Dora só reconheceu um rosto entre os vivos. Francisco era o braço direto do Barão Justa, mas, pelas roupas que vestia agora, voltou ao lugar dos outros pretos, de cabeça baixa e ombros caídos.
A mulher já dava as costas. Dora insistiu.
— Perdão pela invasão, Senhora. Vosso pai me disse, no dia em que parti dessa casa, que ela estaria sempre aberta para mim, caso quisesse voltar. Busco trabalho e imaginei que, nesse dia de véspera de Natal, sua casa precisaria de toda mão para ajudar. — Era uma meia verdade. As palavras do Barão foram ditas como zombaria, mas foram ditas, e isso era o que importava para essa gente.
A malícia desapareceu dos olhos da Sinhá, dando lugar à raiva. Dora via a mulher tentando manter a compostura, mas a menção de uma promessa do pai claramente incomodava.
— Tem um documento escrito? Algum papel que prove isso?
— Tenho não, Senhora Lucélia. Francisco e outros estavam ao lado de seu pai quando ele disse as palavras. — Dora apontou o homem, que agora saía do meio da multidão.
A senhora olhou para ele. Dora sabia que esperava uma negativa, mas o homem abriu um sorriso e falou.
— Disse, sim. Seja bem-vinda de volta, Dora.
A raiva de Sinhá Lucélia, antes destinada a Doralice, agora se voltava para Francisco, que se encolheu. Dora desconhecia o que aconteceu naquele lugar nos últimos anos, mas não havia amor entre aqueles dois. O agradeceu em silêncio por ter algum aliado, mesmo que entre os inimigos do passado.
— Olhe, senhora, não quero incomodar em dia de festa, se buscar na memória vai lembrar que sou uma doceira de mão cheia. Meus bolos eram famosos por aqui.
Aquelas palavras colocaram um sorriso na boca da mulher. Talvez seu paladar tivesse uma memória melhor do que os olhos.
— Dorinha, como pude me esquecer de você? Venha, suba. Desculpe as minhas maneiras, a casa está um caos. Vá direto para a cozinha, por favor, as meninas vão lhe apresentar as novidades, mas você deve lembrar tudo de cor.
Dora teria se chocado com a mudança drástica, não fosse a memória de suas reinações quando criança. Fazia mal para bicho, planta e gente, sem distinção, e chorava como vítima se alguém a acusasse. Lágrimas brancas, os escravizados diziam.
Entrou na Casa Grande pela porta da frente. Talvez fosse pressa de Lucélia, ou algo pudesse ter mudado no lugar, pouco importava. Ao dar o primeiro passo na sala, viu um fantasma. Barão Justa estava na cadeira de balanço, olhava para um canto vazio da sala. Agradeceu aos deuses por Sinhá Lucélia ter lhe deixado para trás, porque, diante da visão daquele homem, não pôde conter as lágrimas. Andou até aquela pálida e esquelética versão do sujeito.
— Não achei nosso filho. Então, voltei.
Não recebeu resposta, além de uma baba escorrendo pelo canto da boca mole. Esse fantasma era de carne e osso, diferente dos outros que vagavam por aquele lugar. Dora observou as sombras, marcadas e feridas, colocando peso na alma do velho, devolvendo na morte o recebido em vida. Entregavam para ela apenas olhares gratos. Eles sabiam.
A casa, de fato, estava em polvorosa, sendo decorada. A cozinha parecia um campo de batalha, moças jovens preparando os mais diversos pratos. Entre elas, uma única velha. Bastiana mancou até Dora e lhe deu um abraço apertado.
— Finalmente, uma cozinheira de verdade. Você não sabe o que tenho de passar com essas cabeças de vento.
As moças soltaram risadas, jogavam farinha umas nas outras. A brincadeira foi interrompida no instante em que Sinhá Lucélia entrou. Explicou, mais uma vez, a importância do jantar e dos convidados. E que, da próxima vez que entrasse e visse bagunça, todas iriam para o tronco e depois pros cafezais.
— Bastiana, providencie que Dora receba tudo que precisa. Eu quero um bolo, um daqueles que ela fazia em dia de festa aqui em casa. — Virou-se para Dora. — Espero que não tenha perdido a mão, pois vou anunciar essa sobremesa aos meus convidados com a pompa que meu pai fazia no passado.
Apesar do sorriso, Dora reconhecia a ameaça, um conhecimento adquirido apenas por aqueles privados de liberdade.
— Perdi não, senhora. Estou melhor do que nunca.
E não mentiu. Trabalhou muito durante suas viagens, com todo tipo de coisa, muita que não se orgulhava. Procurou por seu menino por toda a província e em todas ao redor. Usou todos os recursos e forças. E nada. Como se o filho nunca tivesse existido.
Estava feliz, mesmo assim. Agora, de volta àquela casa, podia fazer uma das poucas coisas que amou na vida além de ser mãe: cozinhar.
Francisco entrou na cozinha. Em seu rosto, voltava o olhar de suspeita que vestiu durante boa parte da vida de capataz.
— Voltou só para cozinhar, Dora?
— Voltei porque precisava. Mas não tenho querela com você.
Francisco cobriu o rosto. Foram suas mãos que arrancaram a criança de seu colo, mas a ordem veio de outra boca. Se ele não obedecesse, iria para o tronco como qualquer outro preto, e mais um viria para levar seu filho.
— Deixa a mulher trabalhar, Francisco. Ela vai fazer o que ela quiser fazer — disse Bastiana.
Faria o melhor bolo de sua vida. Faria por seu pequeno, que não teve a chance de ouvir as histórias de sua mãe e de seu povo. Faria por eles, que enchiam as portas e janelas. Observavam o trabalho da confeiteira e sussurravam “faz por mim”, “faz pela mainha”, “faça por você, irmã”, apenas para os ouvidos de Doralice. Cinco gerações de cozinheiras guiando suas mãos. Entregando-lhe as medidas, as mexidas, as pitadas. Dora entregava seu corpo à vontade delas. E a vontade virava movimento, que virava a massa. A única entrega ausente de desconforto. O mundo desapareceu ao seu redor. Só restaram elas e Dora. Enquanto mediam cada ingrediente, ouvia gemidos, enquanto contavam o número de movimentos na massa, ouvia as súplicas, enquanto moldavam as pequenas flores e preparavam os recheios, ouvia chicotes estalando. Eram ecos do passado.
Trabalhou como uma escultora em uma obra-mestra. Dedicaria os anos de vida que lhe restavam, se pudesse, à feitura do bolo. Todos os vivos a observavam. Havia uma admiração, quase uma reverência, em seus olhos.
No fim, sentou-se em um canto da cozinha e descansou diante de sua obra. Lá, permaneceu admirando-a. Não ouviu quando a Sinhá entrou para elogiar o trabalho. Ou quando, aos poucos, a cozinha era esvaziada dos pratos do jantar. Não ouviu a música ou as risadas, não ouviu quando Sinhá Lucélia anunciou o bolo como algo que não poderia ser encontrado nem nas melhores pâtisseries de Paris. Estava no mundo deles agora, dos que acompanharam suas dores, que a tiraram de perigos, que se fizeram presentes quando mais ninguém estava lá. Ali, na ampla cozinha, eles cobriam cada pedaço de chão e estavam sorrindo. Estaria seu filho entre eles?
Doralice só voltou a perceber o mundo quando os primeiros engasgos vieram da sala de jantar. Era um barulho surdo, perdido entre piadas e comentários espirituosos.
Quando os gritos começaram, já era tarde demais. Os pretos correram para acudir os moribundos. Depois, para fugir. Só neste momento, Dora se permitiu um sorriso. Limpou a farinha das mãos, cumprimentou Bastiana e Francisco e, sem pressa, deixou a Casa Grande pela porta dos fundos. Os fantasmas não a seguiram.
Wilson Júnior
Wilson é formado em História e tem uma Pós em Escrita Literária. É fundador do coletivo literário Escambau e editor da Revista Escambanáutica. Mora em Fortaleza-CE. Dividido entre escrever, dar aulas de escrita, ser Coordenador de Mídias e os projetos do coletivo. Sobra pouco tempo para viver.
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