Escrito por Giu Yukari Murakami
Editado por Lucas Ferraz
Preparado por Iana A.
Certa noite percebi que os galhos da mangueira plantada no quintal de casa começaram a avançar para a janela do meu quarto. No início não me importei. As sombras distorcidas sob a luz dos postes da rua não chegavam a me assustar. Pelo contrário, sentia um alento em ter aquela inusitada companhia depois de tantos meses sem receber uma visita sequer.
Tudo mudou quando os galhos invadiram a janela, acoplando-se nas bordas e se esticando até minha cama. Foi em uma madrugada de agosto. Lembro apenas de estar sonolenta, as pálpebras pesadas e o corpo mole demais para ficar tão preocupada com as sombras que pareciam adentrar meu quarto. Era só mais um sonho! Um sonho com um incomum cheiro de madeira e um ruído suave de folhas farfalhando, talvez real demais… Não sabia dizer. Quando amanheci, estava presa.
O susto verdadeiro me ocorreu antes mesmo que eu abrisse os olhos ao despertar naquela manhã: senti um aroma adocicado de manga e a aspereza dos galhos. Quando acordei por completo, sufoquei um grito. Os braços nodosos se aprumavam ao redor de mim como veias.
A princípio concentrei-me em respirar, temerosa de que a qualquer movimento fosse esmagada pela madeira. Depois de sentir minha palpitação desacelerando, empurrei os galhos e folhas para longe, tentando abrir uma passagem para sair da cama. Consegui me levantar, mas quando ia pegar o impulso para fugir, as ramificações se esticaram e se agarraram a mim. Soltei um gemido de dor quando os galhos espiralaram pelos meus braços em um processo lento que me deixou paralisada de medo. Por fim, a aspereza da madeira encontrou seu destino final em meus pulsos, onde os raminhos com folhas alongaram-se entre os dedos como uma capa que se estendia da minha coluna até as mãos.
Respirei fundo tentando processar aquela situação. Eu não poderia estar sonhando com um peso tão real em minhas costas, com uma sensação tão vívida de dor. Inúmeras perguntas passaram pela minha cabeça enquanto também pensava em pedir ajuda, mas de quem? Chamar a polícia ou os bombeiros? Ou até mesmo um botânico?
Tentei andar até o banheiro, mas os ramos da árvore me prenderam onde eu estava. Senti repuxarem meus ombros para trás, endireitando minhas costas. Então, com um movimento brusco, viraram-me em direção à saída do quarto. De canto de olho, consegui ver que a mangueira permanecia estática do lado de fora, como se só os galhos tivessem consciência do poder que tinham sobre mim. Poder este que foi reforçado com empurrões e um peso cada vez mais esmagador. Quanto mais eu tentava parar de caminhar, mais forte os galhos me impeliam para a frente, até que, depois de sentir minha pele queimar de dor pelo esforço contraproducente, deixei-me ser conduzida para onde quer que a mangueira quisesse me levar.
Direcionou-me até a cozinha de casa, no andar de baixo. Pratos e copos sujos da noite anterior faziam a pia parecer uma zona de guerra. Imaginei o trabalho que teria assim que me livrasse da árvore. Chegava tarde, depois de um dia inteiro de trabalho e aulas da faculdade, e mal tinha tempo de engolir o que quer que estivesse na geladeira antes de subir e apagar de sono. Às vezes, dormia no sofá da sala, sem energia sequer para me achegar ao quarto.
Entre minhas divagações, as folhas dos galhos se esticaram como se tivessem tomado um susto com o cenário. Em seguida, os ramos do meu braço esquerdo repuxaram-no, fazendo-me erguê-lo bem diante dos meus olhos. A minha própria mão, encapada com os raminhos, fez um movimento involuntário juntando o dedo do meio ao polegar. Não tive tempo de processar como ela se mexia sozinha antes de receber um peteleco no nariz.
E ao sentir aquela dor tão familiar, meu coração saltou com uma lembrança.
— Batchan?
Meus braços, novamente sozinhos, fizeram um arco ao redor da minha cintura em uma pose de censura. Corei. Aquilo era impossível.
— Batchan, o que a senhora… O que tá havendo? Eu morri?
Minha mão direita movimentou o dedo indicador de um lado para o outro em negativa e então apontou para o calendário ilustrado com flores de cerejeira que ficava no balcão da cozinha próximo aos temperos.
— 13 de agosto. — Li alto e dei ombros. — O quê que tem?
Falar sozinha com galhos que faziam minhas mãos e braços se moverem contra a minha vontade, como se fossem minha batchan, era uma situação muito constrangedora. Optei por fingir para mim mesma que eu não era estudante do quarto ano de física na Universidade Federal do Pará, não que fosse difícil ignorar meus conhecimentos técnicos quando se tratava da minha família.
Batchan pareceu furiosa comigo. Deu-me outro peteleco.
— Égua, isso dói. Dá pra parar com isso, batchan? Por que me trouxe aqui?
Ela movimentou os galhos nas minhas costas, fazendo-me caminhar até a geladeira. Demorei alguns segundos para entender que ela queria que eu a abrisse. Quando o fiz, esticou meus braços vasculhando para pegar vários ingredientes: ovos, algas, a garrafa de plástico com o tucupi[1] que comprei na feira do Ver-o-Peso e as raspas de gengibre que eu costumava colocar em sucos de abacaxi. Fechou a geladeira e espalhou os ingredientes na bancada próxima da pia.
Enquanto batchan usava minhas mãos para ligar o fogão, colocar uma frigideira para esquentar e pôr o gohan para cozinhar na máquina de arroz, eu tentava processar o porquê daquilo estar acontecendo comigo. Não que não sentisse saudades de batchan, mas ela estava morta havia uns sete anos e ninguém poderia lidar bem ao receber parentes falecidos em forma de galhos de mangueira.
Então arquejei.
— Minha Nossa Senhora, batchan — comentei, enquanto suas mãos habilidosas, ou melhor, minhas mãos habilidosas graças a ela, moviam-se velozes entre quebrar o ovo e mexê-lo numa tigela com hashis para depois colocá-lo na frigideira. — As tuas cinzas serviram de adubo pra essa mangueira. Quer dizer que se eu morrer, posso pedir pra me cremarem e jogarem minhas cinzas num ipê pra eu poder voltar como pétalas que ficam voando por aí? Pensando bem, por que a senhora só veio ago–
Minha mão esquerda tapou minha boca. Desta vez sufoquei um riso. Isso foi tão batchan que me deixou feliz e saudosa.
Ela continuou usando minhas mãos para preparar a refeição. Após cozinhar o arroz, deixou-o esfriar na frente de um ventilador enquanto fervia o tucupi e jogava alguns camarões frescos no caldo amarelado. O cheiro ácido invadiu minhas narinas contrastando com a suave maresia das tiras de algas espalhadas em um prato grande.
As cores e os cheiros da minha infância. Foi quando percebi o porquê de batchan apontar para o calendário.
Agosto era um mês importante. Nessa época, nossa antiga casa em Tomé-Açu se enchia de parentes e uma profusão de conversas em japonês e português se misturava ao barulho das facas usadas pelas titias e batchan ao cortarem os legumes. O ar se impregnava de aromas: o pitiú[2] de peixe fresco da espécie que dava para comprar, o carê[3] apimentado, a maniçoba[4] com cheiro de folha e porco, o açaí terroso. Eram o resultado de várias histórias que se uniram ao longo dos anos.
Eu corria com meus primos pela casa brincando de pira-pega e, de vez em quando, era a corajosa que me achegava à cozinha sem ninguém ver e roubava um makizushi bem recheado com gengibre, pepino, cenoura, ovo e frango. Quando passava ilesa por batchan, levava o rolo inteiro para os primos. Quando ela me pegava, haja peteleco no nariz. Ao final do dia, já empanturrada de açaí, as esculhambações eram esquecidas.
Com o tempo, alguns tios-avôs faleceram. Doenças variadas, disseram: excesso de trabalho no Japão, sol quente na lavoura, doença da coluna torta, picado por uma Uwabami, um deles teve a alma levada pela Princesa da Lua… Quando criança, suspeitava de que metade daquelas histórias eram mentira, mas não importavam as circunstâncias: sabia que todos eles eram queimados até virarem cinzas. A primeira vez que vi um tio virar pó tinha uns dez anos e jurava que havia sido magia.
A vez da minha batchan foi quando eu já estava na faculdade. Meus pais, decasséguis[5], não estavam no Brasil nos últimos dias de vida dela. Apoiaram-me por ligações, mandando várias instruções e dinheiro do Japão. Lembro de acompanhá-la todos os dias e noites no hospital. Tentei fazer tudo o que me pedia em seu olhar silencioso. Não falávamos muito porque, em minha inocente criancice ao achar que um dia teria tempo para aprender formalmente, nunca me esforcei para entender mais de japonês do que o básico do dia a dia. E batchan cresceu com sua própria língua, não havia como se adaptar ao português para superar as limitações que eu mesma tinha.
Foi em dezembro. Havíamos chegado do hospital após uma consulta de rotina quando o médico já havia me alertado de que não tinha jeito. Preparei sopa de missô para ela do jeitinho que gostava: com bastante soja. Ela tomou tudo e ficamos nos encarando por quase a noite inteira. Eu comentava como era minha faculdade, explicando termos científicos que ela nunca compreenderia. batchan ouvia tudo em silêncio antes de ela própria começar a falar sobre sua vida, ao menos, era o que eu supunha. Fingíamos as duas entendermos o que a outra dizia para eternizar um momento que minha lembrança me permitia alcançar sempre que me sentia sozinha.
Naquela noite, ela me deu um beijo na bochecha. Foi o primeiro beijo que recebi dela em todos os meus vinte anos. O primeiro e o último.
Aquela lembrança me sufocou e o ar que prendi se expandiu mais rápido do que pude me preparar. Sacudi meu corpo na vã tentativa de evitar que minhas lágrimas se derramassem nos bolinhos de arroz que minha batchan enrolava tão caprichosamente nas algas.
— Gomen[6], batchan!
Ela usou minha mão esquerda para secar as bochechas. Senti a rigidez da madeira antes que batchan movimentasse meu polegar na maçã do meu rosto em um gesto de carinho. Dei um meio sorriso e deixei minha cabeça descansar na palma da minha… Da sua mão.
— Arigatou.
Continuamos a espalhar o arroz pelas algas pegando um pouco de camarão no tucupi para rechear os oniguiris. Prestei atenção em como ela fechava as pontas das algas em forma de triângulo enquanto amassava o gohan. A comida dela me fazia tanta falta quanto os tempos em que convivíamos juntas em Tomé-Açu. Ainda que fosse uma possessão assustadoramente anormal, precisava aproveitar que ela havia se apoderado tão bem do meu corpo na sua forma de árvore.
Batchan me usou para montar um pequeno banquete em uma bandeja de madeira: oniguiris recheados com camarão e tucupi, tiras de omelete adocicado acompanhado das raspas de gengibre e de cenoura. Com cuidado, ela moveu os galhos dos meus braços para apoiar a bandeja e me direcionou até a saída de casa. Quis contestar enquanto caminhava, atrapalhando-me enquanto abria a porta. Senti os ramos se desenroscarem de mim e batchan recuou até o interior da casa, desaparecendo da minha vista enquanto retornava pelo corredor da escada até meu quarto, desfazendo o trajeto que tinha percorrido com seus galhos.
Do segundo andar, batchan retrocedeu pela janela até seus ramos se posicionarem do lado direito da mangueira. Outro conjunto de galhos no lado esquerdo começou a se mover, contorcendo até que parecessem um par de mãos com dedos finos e folhosos. As mãos nodosas curvaram-se, como se estivessem ofertando algo, mas então o que seriam os dedos começaram a se abrir e fechar para dentro da palma: um convite para que eu me aproximasse.
Quando dei meu primeiro passo para fora da casa estranhei a rua deserta. O calor abafado da minha cozinha foi amenizado pelo vento matinal, um frio raro em Belém. Inspirei o aroma da grama alta e parei em frente à mangueira. A árvore parecia maior do que minhas lembranças de rotina, imponente em sua majestosa naturalidade em meio à selva de concreto.
Fixei-me nas folhas grandes que dançavam com a brisa, as mangas ainda verdes movendo-se discretas. Os galhos em forma de mãos apontaram o indicador para baixo. Demorei a entender para onde me apontava — de tão altas que estavam as gramas — até que um brilho me chamou atenção. Arrastei com o pé parte da relva e quase pisei em um porta-retrato em uma moldura de ouro folheado. Estagnei diante da foto de batchan e senti meus joelhos fraquejarem. As mãos de galho sustentaram meu peso e me ajudaram a ajoelhar diante da foto de minha vó.
— Batchan, eu sinto muito.
Trêmula, comecei a tirar as tigelas da bandeja e espalhar a comida ao redor de sua foto. Deixei minhas lágrimas caírem soltas enquanto sussurrava pedidos de desculpas. Há quanto tempo eu não lhe prestava homenagens a ponto de me esquecer que havia feito um altar especial para ela?
Toquei sua foto: ela vestia seu quimono de festas, o preto com flores douradas, as pétalas alongadas no fundo escuro. Ela sorria do seu jeito: um não-sorriso silencioso, a linha reta que de vez em quando me assustava e encantava na mesma medida.
Agosto era o mês do Obon Matsuri, o Festival dos Mortos. Faziam sete anos ou mais que eu não prestava uma homenagem sequer a qualquer um dos meus parentes. Havia sido tempo demais, até mesmo para batchan, esquecida entre a grama alta do quintal da minha casa.
As ramificações da mangueira aproximaram-se novamente de mim. Algumas folhas esfregaram-se contra meu rosto, limpando minhas lágrimas. Soltei um riso enquanto tocava, desajeitada, os galhos, temerosa de quebrá-los, mas tentando transmitir todo o sentimento que me engolfava entre as lembranças do meu desmazelo e o carinho que sentia. Os galhos se agarraram em mim com força, enroscando-se como uma serpente espiralava uma árvore, uma ternura esmagadora que nunca antes havíamos experimentado. Abracei-os de volta enquanto fixava meu olhar nos oniguiris. No próximo ano, eu mesma enrolaria os bolinhos de arroz para Batchan. Suas mãos mereciam, enfim, descansar.
[1] Tucupi é o sumo amarelo extraído da raiz da mandioca brava quando descascada, ralada e espremida.
[2] Gíria paraense para o cheiro forte característico de peixe.
[3] Curry japonês, grafia brasileira.
[4] Prato que leva como ingrediente base a maniva, folha da mandioca moída. É uma comida apelidada de “feijoada sem feijão”.
[5] Trabalhadores estrangeiros no Japão, descendentes ou não de japoneses.
[6] Desculpa, em japonês.
Giu Yukari Murakami
Giu Yukari Murakami é autora paraense e nipo-brasileira. Escreve fantasia e ficção científica buscando unificar aspectos culturais da vivência nortista e da representatividade amarela em suas histórias.
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