top of page

Coração dos outros, terra de ninguém

Escrito por Bruno Vial

Editado por Julia Serrano & Iana A.

Preparado em português por Ingrid Pereira

Versado por Renata Torres

Preparado em inglês por Bianca Zamin & Julia Serrano



Foi saudade. Hulú Otávio entra no terreiro, e nada do que fizerem vai desatar aquele nó, enlaçado feito cipó em suas entranhas, desde que tocou os pés cruzados na terra que não era sua. As palmas do povo traficado para aquela sua verdadeira terra ecoam além, e ele os vê como são, e eles o veem como é. Saudade, canção que ressoa alto, chamou ele ali. No terreiro, nesta terra que não é de um nem do outro, terra que sou, eles se encontram. O mundo tem dessas coisas.

Não erra o caminho, caminha de trás para frente na fila, e Sete Flechas o saúda, Okê caboclo! Hulú Otávio, nome metade de lenda, metade de gente, Okê. Sete Flechas é dono do terreiro, Salve, filho do Povo da Mata, está longe de casa. Estamos os dois, caboclo. Vim conhecer, as rodas de samba do Porto são até boas, mas preciso de energia da terra.

Traz coisa boa, meu filho, Sete Flechas puxa o fumo, Povo da Mata de lá também está vindo pra cá. A terra muda com a gente que vem de lá pequenininho. A terra ouve sim e aprende. Quem sabe, né? Seu cabelo de fogo não alumia e hoje meu filho vê o que tá procurando, e Hulú Otávio toma o passe. Sete Flechas o convida para ficar na gira, obrigado caboclo, mas não dá não, vou sentar.

Leva consigo as lágrimas. O fogo dentro dos olhos se verte em água, toca na música, marca no ponto. Seu cotovelo bate no dele e as pernas se roçam. Hulú Otávio se vira para pedir desculpa e o encara. Ele, nascido na terra que sou, o encara de volta, olhos escuros e com estrelas. O mundo tem dessas coisas.


 

Diogo fecha a porta. A casa antiga, morada de sua família há tantas gerações, permanece igual desde que os Cocos chegaram em minhas terras. A pedra de sua fundação mantém sua integridade, ainda que minguada diante dos novos prédios da freguesia da Foz. Ninguém se aproxima, ninguém a incomoda. Velhos costumes são difíceis de morrer.

Tira os sapatos e coloca ao lado dos outros dois pares naquele murinho da entrada, antes altar de oferendas, nos tempos em que sua família era temida e procurada pelos seus serviços sombrios, mas que agora só serve de apoio. O cheiro de caldo verde vem da cozinha e Diogo Coco ouve bruxedos, benzas e rezas do bisavô, que mexe a panela de ferro com a colher de pau.

— Nenhuma criança, Diogo?

— Não, biso. Nós não fazemos mais isso.

O bisavô resmunga. Ele já esqueceu. Diogo sobe a escada de pedra da casa, fria, mesmo no verão. Em seu quarto, coloca a playlist do Spotify, abre a janela para entrar o vento do mar, na esperança vã da brisa quente carregada de quase meia-noite adentrar.

Na orla do mar, no calçadão quase vazio, ele passa com uma mochila de entregador. Caminha rápido a pé, rápido demais. Não presta atenção e preciso lhe mostrar onde está, o que ver. Com displicência, uma folha cruza o caminho dele, rodopia no vento e o faz virar. Ele o vê. E Diogo o vê, iluminando o mar do cais. Seu quarto é mais quente com aquele sorriso.


 

Hulú Otávio cruza a Ponte do Infante, vindo de Gaia. Caminha pela Baixa, percorre ruelas guiado apenas pela morada, sem precisar de GPS. Não se perde nunca, encontra o atalho entre minhas subidas e descidas. Caminha certo, os pés de trás para frente, vai rápido. Toca campainha, mais uma entrega. Preciso do código, senhor. I don’t understand, o cliente só fala inglês. The Ubereats sent you a code, sir. Não é tão difícil. Oh, of course, one minute. Ele espera do lado de fora, demora. Zero, one, nine, entrega o lanche, sai. Três euros de gorjeta. Nada mal.

A noite vai curta, sinto seu cansaço, e sua voz e vontade se misturam a todas as outras minhas. Logo mais o sol nasce no lado errado para ele. Mais uma entrega, algum Airbnb na beira do rio, Miragaia. Tanta gente de fora, muita gente de dentro. Faz parte do que sou, ser todas essas pessoas. Ninguém se demora mais para ver, ninguém mais ouve a terra minha. Mas ele para. Na beira do Douro, na área da Ribeira que me cruza e me orgulha, o Rio Doce vem junto na memória da mãe na mata, ensinando-o, tão pequeno ainda, os caminhos, sua herança e natureza, ali nas margens que sobem com a cheia. Sigo seus sentimentos no mesmo correr das águas. Suspira o ar do verão, cheio de pólen de cidade grande. Mas não tão grande, na lembrança é bem maior a Belo Horizonte de seu pai, e sabia cada rua dela. Aqui era mais difícil para ele me encontrar e desvendar, mas terra é terra, e eu aprendi em seus passos sobre mim.

Encerra o aplicativo e é hora de voltar para casa. Uma última caminhada longa e sem pressa. Abre a câmera, uma selfie para os amigos que ficaram do lado de lá. Cabelos vermelhos, a pele erva de jambu, como diz sua bio naquele outro aplicativo. Se reparar bem, tem fogo nos olhos. Mas precisa de muita atenção, pois sua chama quase se apagou.

Passa o prédio da Alfândega, o anúncio da exposição imersiva da Frida Kahlo brilha. O som das gaivotas na beira do rio o guia pelas minhas ruas, e ele avista a pele branca, destacada na iminência do raiar do dia, daquele sentado na beira do Douro. Abre o semáforo. Um carro chama a atenção ao passar veloz, faz ele virar o rosto, sorri surpreso. Hulú Otávio sorri de volta para aquelas estrelas.

— A gente tem que parar de se encontrar assim.

— Pois. Gostava de te encontrar de verdade. Tomas um café?

— Sou brasileiro de Minas Gerais, que acha?

— Não percebi.

— Tomo café, sim, mas que tal uma cerveja? Amanhã vai ter uma roda de samba. Quer ir?


 


Sei das minhas terras que no fado é de se ter alguma pequena alegria. Mas no samba é preciso alguma tristeza, cantam quando Diogo chega. De longe, Hulú Otávio o vê e sorri, o alargador de orelha balança, as argolas no nariz e supercílio brilham. Aproxima-se trazendo dois copos de cerveja, entrega um e pisca, beija Diogo. O hálito alcoólico invade a boca, as línguas dançam juntas feito a gafieira que me trazem. O braço de Hulú Otávio enlaça sua cintura.

— Melhor já beijar no começo, assim a gente já tira isso do caminho. Bom que veio.

— Obrigado eu.

Hulú agarra sua mão e o guia por entre as pessoas que riem, bebem, cantam e dançam. Diogo toma a cerveja, balança a cabeça e arrisca alguns refrãos. Hulú o leva para uma mesa. Pessoal, esse é Diogo, aquele da gira. Diogo, pessoal.

Um garoto de gorro vermelho enche seu copo, derramando sobre a mesa vermelha de metal riscado cerveja da garrafa de litrão Super Bock, que escorre e lhe cai sobre a perna mecânica. Na falta de uma Brahma, vai essa mesmo, diz o rapaz em voz aguda. Discutem sobre marcas além-mar, Antarctica, Skol, Itaipava. Alguém elogia a Heineken e os outros vaiam. Diogo não acompanha, segue bebendo, as mãos calorosas de Hulú enlaçadas nas suas.


 

Já vai quase anoitecer, e o pôr do sol da colina da Quinta da Macieirinha é um dos meus orgulhos, o Douro merece o nome que tem quando o admiram daqui.

— Vai fazer três anos que cheguei em Portugal, aqui no Porto — Hulú deita a cabeça sobre o colo de Diogo — e nunca tinha vindo aqui. Mas também, a gente não para, né não? 

 Diogo joga os braços para trás, apoiando-se sobre a grama. Um silêncio confortável fica com os dois. 

— Tenho que concordar, viu? O jardim aqui tem mesmo uma vista magnífica do rio. Já é quase dez da noite e o sol ainda tá aí, brilhando. — Hulú Otávio se espreguiça todo, esparramado na terra. — Nem parece que no começo do ano eu estava tremendo, congelando na escuridão das cinco da tarde. Tudo errado aqui.

— Tu tremes e congelas?

A pergunta vem com um riso, mas Diogo o encara de soslaio.

— Você sente calor e fica suado? Pois é, então deve ser a mesma coisa. Eu odeio o frio daqui. Bem, nem todo o frio.

Hulú puxa Diogo e o beija, o piercing na língua tilintando na boca do outro.


 

O quarto é alugado, um casarão antigo perto da Igreja da Lapa. Escuro e sem janelas, tem cheiro de mofo. O burburinho do ventilador preenche o vazio, amenizando o calor e o silêncio. Hulú afasta as roupas de cima da cama, e duas cuecas pretas caem no chão. Diogo se abaixa para pegar.

— É pequeno, apertado e sem luz, mas é barato. A dona é uma bruxa, assim, não literalmente uma bruxa, não como você…

— Eu percebi. — Diogo ri, tentando achar um lugar no meio da bagunça para colocar a roupa que ainda está em suas mãos.

— Mas é isso, pago pouco, sobra dinheiro.

Hulú deita na cama, sem camisa, só de short. Diogo admira o corpo maciço, as pernas fortes e grossas, os pés ao contrário, e Hulú gargalhada, pode fechar a boca, vem, deita aqui. Pode tirar a camisa, não tá com calor? Diogo joga as cuecas sobre a cama e tira a camisa, as veias saltam pelo corpo esquelético e pálido. As marcas pretas, os sigilos de seu bisavô, percorrem seu peito e costas. Tatuagens, costuma dizer para os outros, que não sabem. Hulú sabe — marcas místicas de proteção dos Cocos, as marcas que o prendem à sua família.

Na cama, se aninha no peito de Hulú Otávio. Tão gostoso sua pele fria nesse calor, diz de olhos fechados. A mão de Diogo percorre o peito liso, duro. Tu não vais dizer o mesmo no inverno. Riem, se apertam.

— Meu pai deve ligar de Belo Horizonte logo. 

Diogo se estica em silêncio, passa a mão nos alargadores da orelha de Hulú. 

— Falei para ele daquela Igreja do Carmo que a gente foi, do tanto de sangue que tem lá.

— Ouro.

— O ouro do Brasil é sangue em Portugal.

Dói a verdade, estou banhada em sangue dourado.

— Naquela época dos descobrimentos, Portugal fez cenas ruins.

— Invasões, não descobrimentos. A gente já estava lá, vocês não descobriram nada. E “cenas ruins” nem começa a descrever genocídio e escravização.

— Mas minhas ancestrais também sofreram aqui em Portugal nas fogueiras. Quase todas as Cocas, muitas até fugiram para o Brasil.

— Sim, gente finíssima, conheci algumas delas. Mas então, Diogo, não existe uma escala de opressão. Agora, garanto que, se tivesse, a gente lá no Brasil estaria ganhando.

A tensão em minhas terras nunca se dissipa por completo — como poderia, mas Hulú e Diogo estão dispostos.

O celular toca. A foto do pai de Hulú Otávio desponta na tela, homem branco de cabelos ralos. Quer conhecer meu pai e irmãos?


 

O bisavô grita com o pai na sala de baixo. A casa reverbera as palavras do patriarca, e não posso impedir que ela obedeça o seu mestre. Indigno e absurdo! Não vou ter brasileiros em minha casa como convidados. Meu bisneto é meu sangue e ossos, como podes concordar com isto, Miguel? O pai rebate, argumenta, pede calma, mas o velho não se lembra mais. Ele é sangue e ossos de Portugal! É um Coco. Há de estar com um português de boa família. O ódio estremece a pedra e, no quarto, Hulú e Diogo acompanham, este constrangido, o outro, furioso.

Tantos atravessam o oceano até mim e, por estes, sinto muito em já ter enxergado os erros do passado como glórias da vitória.

— Vou embora.

— Desculpa — é tudo que tem a dizer — eu falei com ele, ele tinha entendido, mas o biso já se esquece.

— Eu vou embora. Senão vou descer e coloco fogo na sua casa, ou seu bisavô acaba comigo. Não se preocupa. É foda, eu entendo.

Diogo o leva até a porta. Quando fecha, o bisavô cospe no chão. Os sigilos de Diogo brilham, os olhos de estrelas crescem. Do lado de fora, Hulú não escuta mais nada. Corre a pé na intensidade de sua raiva e humilhação, cruza ruas como borrão, em instantes percorre metade de mim, da Foz até a Igreja da Lapa, e se joga na cama.  Velhos costumes são difíceis de morrer.


 

 A terra que sou muda quando se recusam a ouvir. Hulú Otávio vê a notificação da mensagem de Diogo, mas precisa fazer a entrega. Cruza o Campo Vinte e Quatro de Agosto na direção do Bonfim. O conserto de um cano estourado o obriga a atravessar para o lado da praça, mas esbarra em uma garota loira que também desvia da obra. Ele pede desculpas, e a ouve xingar putain de merde, brésilien imbécile, sem sequer encará-lo. Ele exige desculpas, a menina retruca e segue andando, até perceber que não sabe mais onde está. Hulú a desvia, a faz virar nas ruas erradas, por horas e horas, a faz perder seu caminho, mas também perde o horário da entrega, perde cruzar com Diogo saindo pela praça devido ao atraso do metrô, de celular na mão, encarando a mensagem enviada, a terceira não respondida.


 

Diogo abre páginas de anúncios. É sua quinta entrevista, às oito da noite, quando o sol já quase se esconde pelo mar. O verão está acabando. Imagina o calor de Hulú Otávio no inverno. Abre o WhatsApp, a última mensagem um “podemos ver, não sei quando vai ser a próxima roda. Te digo”, de semanas atrás. Arquivou a conversa. Aceita a vaga, ganharia pouco, pagaria barato, sobraria dinheiro. Sai do prédio em Trindade, os semáforos piscam, de repente estragados. 

Atravessa a rua seguro, resguardado pelo caos. Na esquina em que Diogo não parou, Hulú Otávio está um pouco bêbado, apoiado nos ombros de um amigo. Tu tava feliz, mermão, e faz uma porra dessas, sabe como são esses portugueses, principalmente os velhos, e ajeita o gorro vermelho.


 

 Eu sussurro no vento que passa, nos carros que correm, nas conversas de bêbados, nos mosquitos do fim de verão, esperando que ouçam. Acordam no meio da noite. As folhas já começam a cair. Hulú Otávio sai do quarto, vai para o jardim de trás do casarão, enrolado na manta. Diogo vai para a varanda, apenas com a calça do pijama. Encaram as estrelas, a lua cheia. São pouco mais de duas da manhã, ainda dez horas onde Hulú deveria ser. Pegam o celular, fazem a chamada de vídeo. O pai atende. Pai, você sente saudade da mãe? Pai, o biso tá bem? Olham para a lua. Saudade é canção que ressoa alto.


 

A terra que sou muda, em consonância com quem a pisa. Hulú pisa descalço, suas pegadas não podem ser seguidas, a bolsa de entregador nas costas. Perto das sete horas, o sol baixa na direção da Avenida da Boavista. O frio vem. Do outro lado da rua, na Casa da Música, Diogo caminha. 

Canso de sussurrar. O semáforo fica vermelho para os carros na rotunda, abrindo caminho, a multidão se aglomera na frente e eles param, a revoada dos pombos segue entre eles, chama a atenção. Eis o meu grito, encontrem-se, e eles me ouvem, assustados em estarem frente a frente, desculpa, eu fiquei ocupado, esqueci de responder. Não, está tudo bem. Eu saí de casa.

— Se foi por mim, não sei se deveria.

— Eu amo meu biso, mas ele tem que perceber, o tempo é outro, a cidade está em mudança. Não foi por ti, foi por mim. Está na hora de outra fundação.

— Fixe, giro, legal.

— Tu te ris. Mas pensei em ti. Minha morada é aqui perto, sempre queres tomar um café?

— Sou brasileiro de Minas Gerais, que acha?

Seguem em sorrisos, mãos dadas ao Bom Sucesso. Velhos costumes morrem, afinal. O mundo tem dessas coisas.

E eu mudo mais um pouco, em suas pegadas.



Bruno Vial

Bruno Vial nasceu em Vila Velha - ES, em 1986. Mudou-se para Brasília aos 18 anos e lá fez sua vida, até ir para Portugal, aos 33 anos. Estudou direito, advogou e odiou. Escreve desde a adolescência, especialmente ficção especulativa. Gay, cis, nerd e chato, sonha em ser uma pessoa bem resolvida, mas até lá, vai levando.

Comments


Cometa_Link Patreon.png
bottom of page