Escrito por Frederico Toscano
Editado por André Colabelli
Preparado por Iana A.
Primeiro foi o tilintar, insistente, buscando caminho pelas oiças adentro. Surgia e desaparecia como o vento — como se vento fosse — arrodeando a casa, numa hora ali junto ao pé do ouvido, noutra, parecendo estar na beirada do espinhal. Foi por ali que Polidoro viu o bode pela primeira vez. Dias e dias daquele sino badalando em seu juízo, e era no pescoço do bicho que ele tocava. Achava estranho que fosse assim todo branquinho, sem uma mancha preta que quebrasse aquela alvura de nuvem. E como nuvem, ele ia e vinha, se achegando e partindo quando bem entendia, nunca perto o bastante para tocar. Então vinha o sino, dando na cabeça de Polidoro, de longe irritante e rasteiro, de perto gritado e endoidecedor. Quitéria dizia homem, não se avexe não, que esse daí tem dono e é um que pode, não se meta. Quando perguntou quem era o coronel ou delegado que deixava pastar solto o bode por aí, ela respondeu que não era nem um nem outro. O bicho pertencia ao Rei de Espinhos.
Polidoro não acreditava em Deus, diabo ou rei de qualquer categoria ou espécie, muito menos um que jamais se mostrava além do espinhal que era seu domínio. Queria mesmo era pôr as mãos calejadas de enxada no bode branco, pois além do sino irritante, a fome também arrodeava sua casa. Essa se tornava cada vez mais difícil de ignorar, instalando-se naquela secura que não acabava mais, esturricando as plantações, chupando as carnes dos bois e outros animais até fazê-los esqueletos sob o sol que pesava na cabeça. E o bode lá, gordo, pimpão, trotando para lá e para cá, incapaz de dar um mé ou bé que fosse, mas badalando o sino no pescoço, como um martelo de ferreiro na bigorna que era a mente de Polidoro. Resolveu que ia pegá-lo para si e para a mulher, que não gostou quando ouviu a ideia. Benzeu-se vezes sem conta, repetindo homem, faça isso não, ali tem dono e a parada é dura. Quitéria tinha lá suas ojerizas e seus medos, mas calou-se sob a autoridade nos olhos do marido. Polidoro deu-se por satisfeito e saiu de casa, facão na mão, pois era incrédulo, mas também não custava se prevenir.
Partiu atrás do tilintar, seguindo o ouvido e as marcas no chão rachado. Rodou e rodou, o som indo e vindo, como se mangando da sua persistência. O sol castigava a cabeça e dava combustível ao ódio que queimava Polidoro por dentro. Afinal, quando já ia dar por perdido, viu. O bode estava parado junto à beirada do espinhal, quieto e calado, como se esperasse. Olhou os chifres e estranhou. Não eram os cornos que costumava ver nesse tipo de animal, que se diferenciavam mais pela cor e tamanho. Eram galhadas tronchas e negras, cobertas de espinhos. A brisa acarinhava a sineta de quando em quando, como que chamando. Polidoro foi. Só quando muito perto o bicho se mexeu, embrenhando-se entre os galhos secos. Seguiu por entre os arbustos e sarças, o homem atrás. Quanto mais Polidoro se entranhava, mais leve o sol ficava em sua cabeça, as galhas pontudas e retorcidas parecendo agarrar a luz, sem deixar que tocasse o chão. E o bicho indo, sabia-se lá para onde, talvez junto do dono. Polidoro estremeceu. Decidiu que já caminhara demais por aquela refeição. Deu uma carreira, e dela um pulo. Pegou o bode pelos chifres e gritou quando os espinhos se enfiaram em sua mão. A raiva e a dor comandaram o golpe, e o facão desceu certo no pescoço alvo. Uma, duas, três vezes, até o bode parar de se remexer, sem dar um berro sequer. O sino caiu, badalando uma última vez.
Polidoro guardou a lâmina e, com a mão boa, foi arrastando a carcaça para longe dali, seu sangue se misturando ao do bode morto, a pelagem agora maculada de vermelho. Só queria sair logo daquele espinhal e assim o fez, grunhindo e bufando com o peso que carregava. As galhas secas foram rareando e o sol voltou a malhar seu juízo. Seguiu em um manquejar penoso até a casa, ali naquele meio de nada, berrando o nome da mulher. Quando ela se achegou na porta, deixou o corpo ainda quente aos seus pés, mandando que ela tratasse bem dele, que a fome era muita e matar abria o apetite. Queria uma buchada[1] com tudo o que tinha direito e mais. No começo, Quitéria balançou a cabeça, persignando-se e olhando para a caatinga ao longe, como se esperasse que algo saísse de lá e marchasse em sua direção. Mas olhou a figura medonha que o marido fazia, os olhos esbugalhados e a mão lavada de sangue, facão sujo passado na cinta. Obedeceu. Levou a carcaça para dentro e foi trabalhando, recolhendo o sangue que ainda havia, abrindo a barriga e recolhendo os fatos para fazer o sarrabulho. Deixou separados agulha e linha, para costurar o estômago em bolas. A cabeça ela ferveu até os pelos caírem, que aquela buchada seria completa.
Então Polidoro deixou-se ficar do lado de fora, enrolando um cigarro na mão ferida, as roupas ainda empapadas de suor e sangue. Silêncio abençoado, pensou, olhando o horizonte crestado de sol, que afinal começava a descer pelo céu claro. De dentro da casa já vinha o cheiro do cozinhado, e ele agora salivava em antecipação. Que o dono aparecesse para reclamar, o convidaria para se sentar e comer, até dividir uma garrafa, que depois de uma lapada a amizade haveria de florescer. Se não, o facão continuava na cintura, nem limpou que era para o caso de ter que fazer uso novamente. Esperou e esperou, fumando sossegado e dando trela à fome que aumentava. Quando a mulher afinal serviu, atirou-se feito uma suçuarana à presa. Partiu as bolas de vísceras e esbaldou-se no sarrabulho, chupando os ossos, mastigando as tripas, engolindo os miúdos, juntando ainda uma cuia de farinha boa. Ali junto, a cabeça descarnada, língua desfalecida entre os dentes, com seus estranhos chifres retorcidos, parecia vigiar o banquete do próprio corpo. Quitéria se mostrou enfastiada, mas Polidoro não se fingiu de rogado, decidido a dar vencimento na buchada inteira, sozinho mesmo, e foi o que fez. Terminado, foi para fora, olhar o céu que se avermelhava de crepúsculo e peidar em paz. Assim ficou, tomando umas lapadas pequenas, cuidadosas, da cachaça, até que sentiu uma pontada.
Pobre quando come se lambuza. Lembrou-se das palavras da mãe e sorriu, experimentando um calor que vinha em ondas. Desacostumado à fartura, Polidoro suava um suor amarelo, grosso. Enxugava a testa nas mangas da camisa, praguejando baixo e alisando a barriga protuberante. Soltou um peido estralado, depois outro, parecendo traque de massa em festa de São João. Nem ele aguentou a catinga. Se abanava e abanava o nariz com o chapéu, uns arrotos de queimar a garganta e assanhar o bigode. Sentiu que algo se remexia dentro de si. Abraçou a si mesmo, gemendo com os calafrios que desciam da nuca até o olho do cu. Da porta da cozinha, Quitéria olhava, desconfiada, enquanto o marido se contorcia. Agora grunhia feito porco, tremendo da cabeça aos pés, a camisa colada ao corpo de suor. Viu quando ele resolveu desabotoá-la, como se para dar espaço ao peito respirar. Então olhou para a barriga inchada, a carne ondulando sob a pele, que afinal se rompeu. O homem cobriu o rasgo com as mãos, como se quisesse conter o que de dentro dele saía, enquanto berrava de agonia. Quitéria imitou o grito quando viu o sangue descer, mais ainda quando do buraco despontaram os chifres espinhosos.
Polidoro se batia no chão enquanto o bode branco surgia do seu âmago, silencioso a não ser pelo sino no pescoço. Aos poucos foi parindo o bicho enquanto urrava, cabeça primeiro, depois as pernas da frente e seus cascos, metade do corpo e afinal os quartos traseiros. Quitéria caiu de joelhos, reconhecendo a autoridade da criatura, a ela concedida pelo seu dono e mestre. Peço perdão, meu Rei, peço perdão, por Nossa Senhora e todos os anjos, peço perdão por mim e por esse homem que não sabe o que faz. Assim ficou por muito tempo, prostrada, até que o bode olhou para Polidoro ainda se estrebuchando, e depois para ela. Quitéria entendeu. Pegou agulha e linha, e começou a costurar o marido, jogando para dentro as tripas esparramadas. O bicho virou as costas e partiu, o sino a badalar no pescoço quarado. Polidoro permaneceu entre os vivos, mas nunca mais se interessou por qualquer coisa que fosse. Passava os dias fora de casa, olhando para o nada, oco por dentro, no corpo e no juízo. Muito de vez em quando, a brisa batia vinda da mata e ele estremecia, escutando o tilintar do sino.
[1] Buchada é um prato feito a partir das entranhas do bode — rins, fígado e vísceras — cozidas em bolsas feitas com o estômago do animal.
Frederico Toscano
Frederico Toscano é recifense e historiador. Sua obra À Francesa: a Belle Époque do Comer e do Beber no Recife recebeu o terceiro lugar na categoria Gastronomia do Prêmio Jabuti de Literatura, em 2015. Tem contos de fantasia, horror e ficção científica à espreita em suas gavetas.
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