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Aguanambi

Escrito por Márcio Moreira

Editado por Iana A. & Jayne Oliveira

Preparação por Ingrid Pereira



Primeiro, o obelisco da faculdade de Direito criou raízes. Eu e meia dúzia de pacientes assistimos na TV da sala de espera, os três estudantes bem vestidos que escalavam o monumento na praça. O povo já se amontoava ao redor do fenômeno. O concreto havia se tornado árvore, galhos brancos de cal brotando da coluna, oferecendo frutos de cimento. Quando um dos homens caiu, a multidão irrompeu em vaia: ieeeeei! A repórter conteve um risinho. O corpo docente da instituição, encontrava-se reunido para analisar a possibilidade de um processo contra violação das leis naturais.

— Isso é pedra — disse a recepcionista, interrompendo a reportagem. Achei que se referia ao obelisco, mas ela continuou: — Menino rico fuma pedra e fica doido, aí vê planta em todo canto. Igual ao amigo daquele primo de Carlinha... Márcio Moreira?

— Desculpa, não conheço Carlinha — respondi, confuso.

— Doutor Cássio vai lhe atender. – falou ela, por fim.

Entrei no consultório. Meu caso não era pedra, mas um abcesso dentário, foi o que o dentista disse depois de examinar minha boca e sugar os dentes, como quem descobre um vazamento na caixa de marchas. Não entendo nada de carro.

Tantos dias de antibiótico, um comprimido por dia. E resolve? Não, mas precisamos diminuir a inflamação primeiro. Ah.

Quando deixei a clínica, minha boca latejava. Embarquei no carro de aplicativo e afundei no banco de trás, olhos fechados. O som das buzinas me irritava e por isso ignorei o que tinha atrapalhado o trânsito: o semáforo da Raul Barbosa parou de funcionar quando desabrochou em flor.


 

Nos próximos dias, a cidade virou de cabeça para baixo. No Centro, uma farmácia havia brotado no meio-fio da Duque de Caxias. Ainda era pequena, mas já pedia o CPF para qualquer um que tentasse abrir suas portas. Os tratores da obra na Aguanambi começaram a cavar tocas de tatu e se enrolar defensivos quando o expediente começava. Alguém filmou as estátuas de Iracema fazendo um encontrão na Lagoa da Messejana.

Máquina agia como bicho, que agia como planta, que agia como empreendimento comercial. Só os humanos agiam como eles mesmos. Dito isso, o consenso sobre a situação era de que a Prefeitura não levava o contribuinte a sério.

Enquanto isso, eu curtia o atestado. Passava o dia dormindo e a noite cochilando — quando conseguia um espacinho no qual coubesse deitado. Terceiro semestre de Publicidade, eu morava sozinho num quarto-sala que, somados, não davam um banheiro. Um ecossistema de roupas, louças e livros prosperava nos poucos metros quadrados.

Meus pais haviam visitado uma única vez, de pernoite antes de voltar para o interior. Não gritaram quase nada enquanto eu procurava a cama debaixo do entulho. Quando acordei, no outro dia, eles já tinham ido embora, acho. Não sei o que o bioma do apartamento faria com uma espécie invasora.

Antes de ir, mamãe havia deixado o congelador abarrotado de potes de manteiga, em fileiras iguais, como o exército de terracota, se ele fosse feito de feijão. Naquela tarde, alcancei um dos soldados para aliviar a dor no dente. Uma ex-De Férias com o Ex, falava na TV sobre a viagem mágica ao Amazonas que havia inspirado sua marca de açaí homeopático. A tarde zumbia preguiçosa, então, enquanto Sônia Abrão me convencia a fazer harmonização facial, o telefone piou como um sabiá. Olhei para ele suspeito, aguardando três toques para ter certeza de que não levantaria voo.

— Tu não respondes mais mensagem? — perguntou Nina, do outro lado da linha. Era a minha melhor amiga desde o colégio.

— Fiquei off pro pessoal do trabalho pensar que tô doente.

— Mas tu não tá doente?

— Exato.

Nina suspirou. 

— Assiste ao vídeo que te mandei, marmota.

— Espera.

Abri o link e projetei o vídeo na TV.

O casal na tela parecia cansado. Em segundo plano, podia-se ver um escritório apertado de Universidade, com direito ao PC amarelado de uso ocupando meia escrivaninha. Um mapa de Fortaleza tomava o lado esquerdo do enquadramento.

— Podemos perceber aqui que o fenômeno se concentra no Centro da cidade, mais forte nas áreas da praia até a Aguanambi — disse o homem, desenhando um círculo vermelho ao redor do território —, e rareando quanto mais distante da área de impacto.

— Mas o que isso significa? — Agora, a mulher se espremia para se dirigir à câmera. — Por que estas anomalias naturais, justo nestes lugares?

Ela levantou um papel, mas era impossível ler os rabiscos desfocados.

— Essa é a área em que a cidade de Fortaleza nasceu. Acreditamos que não seja por acaso: segundo os princípios da psicogeografia, o território afeta indivíduos emocional e espiritualmente. Os indivíduos, por sua vez…

— Os portugueses achavam que haviam fundado a cidade depois de expulsar os indígenas e os holandeses — O homem interrompeu, suor escorria de suas têmporas. A mulher tentou protestar, mas ele a manteve afastada com o cotovelo. — Mas já existia… espera, Nara… já existia vida nesse lugar. 

— Gabriel, a gente combinou…

O homem se levantou da cadeira em que estava e se aproximou da câmera, tomando toda a tela.

— Os fenômenos são uma mensagem: a terra nos quer fora daqui. Ela está viva! Genius loci! O espírito do...

A tela escureceu. 

Fiquei em silêncio por alguns instantes.

— Alô? — disse Nina, do outro lado da linha. — Tá aí? 

— Doido… — articulei, finalmente.

— Maluco — ela respondeu.

— Isso é teoria da conspiração, né? 

— Teu telefone cantou igual a um passarinho quando liguei?

— Foi… 

— Mas tu não lembras de ter trocado o toque.

— Como é que tu… ah.

Sacudi a cabeça, buscando outra explicação. Tinha que haver um motivo racional, como um acidente bioquímico ou um vórtex transespacial da zona… certo, pensei, eu desisto.

— Tá, então digamos que seja verdade. O que a gente faz agora?

— Tu, eu não sei, mas eu já estou fazendo — o som de aspiração seguido de uma tosse súbita veio do outro lado da linha. — Vou para praia com a galera do coletivo. Vamos tentar comunicação com Gaia. 

Ouvi o exalar de fumaça e quase pude sentir o cheirinho de DCE.

— Bora?

— Fica para próxima — respondi, ainda pensando no vídeo. — Mas espera. Tu acreditas nessa história? Que é, tipo, um espírito assombrando a cidade?

— Por que não? — indagou Nina. — Você ouviu o cara. Esse país inteiro é um cemitério indígena.


 

 

@patriotadeniobio 

tá com medo de fantasma chama a mamãe. os homens de verdade vão ficar e lutar pelo que é nosso!


@Crisodonto

gente, muito séria a situação em Fortaleza!!!! força para toda a galera de Pernambuco tmj


@drebasantos

isso é história de fantasma pra boi dormir. o verdadeiro filme de terror é como o governo trata o Nordeste. n vamos cair em cortina de fumaça!


@manoempreendedor

Dizem que fantasmas têm negócios pendentes na Terra. Então não espere para começar o seu! Matricule-se em nossos cursos e aprenda como empreender em tempos de crise espiritual!


@lucabjardim

uma preguiça entrou na minha casa lol


 

A teoria da assombração se espalhou como fofoca no Natal em família. Era difícil não acreditar. A cada esquina, postes e árvores se confundiam, perdidos na grama escura que brotava do asfalto, como se a vida transbordasse por cada brecha e rachadura, encontrando caminho até a superfície. Não importava o quanto se cortasse, ela teimava em florescer.

E, se a metrópole se tornava natureza, também a mata parecia mimetizar o asfalto: grandes cajueiros nasciam com varanda gourmet, enquanto rolinhas saíam do ovo cantando buzinas de caminhão. Como duas cidades sobrepostas, uma delas, toda concreto e ferro, e a outra, paisagem de verde a perder de vista. 

Muita gente arrumou as malas e fugiu naqueles dias, mas a maioria não arredava o pé, por medo de perder o resto da história, ou porque não tinham para onde ir. Minha orientadora, por exemplo, se mudou anunciando que não aguentava mais essas loucuras de planta da cidade e iria para o interior, viver perto da natureza.

Da minha parte, recebi uma série de mensagens de áudio da mamãe. Era como ler a enciclopédia num biscoito da sorte:

“Bom dia, filho”. 

“Falei com seu pai”. 

“Hoje de manhã”.

“O que você comeu”.

E assim por diante. Em resumo, queria que eu fosse para casa, cidade grande não era lugar para um rapaz sensível como eu, com essa violência toda e ainda por cima um pé de farmácia. Tentei acalmá-la da melhor maneira que pude: ouvindo calado enquanto ela reclamava por quarenta minutos, divididos em suaves prestações de 67 áudios. Na mesma noite, papai me telefonou:

— Falei para ela se acalmar, mas tu conheces tua mãe. Isso aí é besteira. Tu devias ver na época do FHC, Marcílio de Socorro plantou uma batata que parecia o Odair José, apareceu até na televisão. Tinha gosto de batata. 

Acho que só entendi a proporção real dos acontecimentos quando recebi, pelo grupo da faculdade, um vídeo de Gabriel Psicogeógrafo (@gabrielpsico), comendo tutu mineiro na Ana Maria. Percebi, então, que nada mais seria o mesmo.

Logo depois, o jornal local entrevistou Dona Adélia, liderança Tapeba no estado. Sem resposta dos botânicos e influencers, a imprensa finalmente havia procurado uma indígena. A mulher, que já havia visto de tudo, não acreditava em fantasmas. Ela explicou que espíritos, sim, tudo tem um espírito, mas o passado não é algo que assombra, assim como a Terra não é de vingança. 

No dia seguinte, a capa do jornal anunciava: “ESPÍRITOS POR TODA PARTE”.


 

 

Foi decidido então, que aquele não era caso de simples visagem, mas possessão das brabas. A posição oficial era a de que um espírito atrapalhava o aterramento do rio Aguanambi e todo o progresso que ele trazia só podia ter parte com o tinhoso. O prefeito logo anunciou que enviara uma carta ao Vaticano (depois, diante de protestos da oposição, admitiu que também tinha mandado SMS para agilizar os processos), enquanto os pastores da cidade organizaram um grande evento de música e louvor no aterro da Praia de Iracema.

O culto foi um sucesso, mesmo que ninguém soubesse exatamente como ele ajudava com a situação.

Já o cardeal enviado da Itália, chegou sem alarde numa quinta-feira. Giácomo aparentava qualquer coisa entre 70 e 120 anos, e tinha a dignidade quieta daqueles que fazem xixi sentados. Pousou no aeroporto um dia antes do anunciado e hospedou-se no convento das irmãs de Santa Terezinha. No dia seguinte, depois da missa, foi assistir a comitiva de recepção que o esperava no terminal de desembarque.

— Perché il trambusto? — perguntou a um rapaz que esperava em meio à pequena aglomeração.

— Opa, minha joia — ele respondeu. O cearense é capaz de fuxicar em qualquer língua — O exorcista da Igreja tá pra chegar hoje. Parece que só perde na pêia pro Papa.

Giácomo avaliou o espetáculo de longe. Fez um muxoxo de desgosto à vista das faixas e flores que o aguardavam no terminal. E bebês, muitos bebês esperando para serem beijados. Era isso. Aproveitando que não havia sido reconhecido, deu meia-volta e foi embora no rumo da cidade. 

Quando o avião chegou sem padre dentro, a consternação foi geral. 

— Cadê o Papa?

— Não é o Papa. É primo dele!

— Alguém procura no banheiro.

— Estão dizendo que chegou ontem!

— Meu avô é igual, não pode sair pra padaria que aparece no boteco.

— Perdemos o santíssimo!

Procura, procura, procura, acharam duas semanas depois. Um servidor da Secretaria da Fazenda reconheceu o senhorzinho que havia montado tapera na Praça da Estação, agora um grande jardim. Quando o Prefeito em pessoa foi ter com ele, Giácomo ensinava a um par de papagaios um canto gregoriano.

— Questo è Dio, mio figlio — disse o padre. E por aí ficou, se fazendo de rogado a todo pedido de exorcismo e rezação, em parte porque não falava português.

Mais tarde, quando o Prefeito finalmente deu a ordem de retirada, os assessores o ouviram bodejar baixinho:

— Tanto padre no mundo e me mandam logo um franciscano.


 

Eventualmente, o inevitável aconteceu.

Acabou a manteiga. O que não era tão ruim porque também não tinha mais pão em casa. O problema mesmo eram os analgésicos. Já fazia semanas que eu estava de atestado e começava a suspeitar que a empresa havia esquecido que eu trabalhava lá. Decidi, então, que já era hora de sair.

No fundo, esperava encontrar uma zona de guerra. Jornais falavam em milícias nas ruas e desobediência civil. Não foi bem o que encontrei, o lado de fora me parecia… maior, descortinando-se diante de mim como um horizonte esquecido por muito tempo no armário. Em todo lugar, movimento. Mas não o ronco alto da cidade em seu tráfego cinza, era o ruído vasto de muitas vidas respirando ao mesmo tempo.

Na Gentilândia, senhorinhas cuidavam de pés de mamão, auxiliadas pelos nômades que costumavam vender bijuterias na calçada. Mais adiante, uma gangue de meninos corria com a carteira de um senhor abotoado. E, por todo o lado, pessoas. Cachorro, galinha e criança se misturavam nos terreiros verdes que haviam nascido de estacionamentos e bares.

Esquecido das compras, me permiti à deriva. Apenas sentir as pernas me levarem pelo relevo da cidade, sem trabalho à espera ou hora que atrasasse. À minha volta, carros ainda se moviam a muito custo, mas pareciam supérfluos. Todo o resto, sim, parecia se deslocar com propósito. O mundo inteiro era vivo, camadas de musgo sobre a cidade tornavam cada fachada um organismo novo. 

Minha vida vai mudar, pensei. Amanhã vou arrumar o quarto, procurar uma academia. Sem falta.

Caminhei por algumas horas. Acabei entrando no parque da CDL, perto do Dragão do Mar. No mundo de antes, era um canal fedorento com um punhado de esculturas modernas. Agora, era um pedaço de selva que não parecia caber nos limites de granito. 

Devagar, percorri a trilha batida até a ponte vermelha que cruzava o canal. Sempre quis saber como era, mas tinha medo de assalto. Apoiado no aparador, vi meu reflexo na água corrente lá embaixo.

— Enquanto eu dormia, o mundo mudou — falei, sozinho. — Acho que prefiro ele assim. 

Foi quando uma pessoa levantou-se do fundo do canal, toda musgo e aguapé. Sabia que devia ter deixado o celular em casa.

— Ah… oi? — eu disse. Depois, lembrando de ser educado. — Bom dia!

A criatura pareceu olhar para mim. Era difícil ter certeza. Seu rosto parecia ao mesmo tempo humano e vegetal, os traços mudavam com os movimentos das folhas e sapos. 

— Bom dia — respondeu.

— Tu… fala português — deixei escapar.

— Falamos os dois a língua da água. Porque a água corre dentro de ti.

— Hm… 

Ficamos quietos por alguns instantes. Considerei se podia colocar isso no currículo.

— Tu és o Espírito? O que está fazendo tudo isso?

A criatura se aproximou como se contasse um segredo, mas algo a impediu de chegar muito perto.

— Eu sou o rio, sou o espírito do rio. Pajeú, chamavam. A primeira água.

— Primeira…?

— Quando o branco chegou, fui testemunha. Cresceu regado de mim, árvores-de-toda-fruta. Mas ele teme a memória, a história da água.

Notei pela primeira vez seus pés. Uma corrente grossa de metal o prendia à terra, fincada no filete estreito do canal que percorria a praça. Lembrei-me do desenho nos primeiros mapas da cidade, o fio de água azul que abastecia a Fortaleza vila. Nunca havia me perguntado aonde estava o rio agora, talvez porque sempre estivesse no mesmo lugar. Ele corria no subterrâneo.

— É verdade, então… esse é o twist, igual naquele filme do Shyamalan. As plantas vieram atrás de vingança.

Pude jurar que Pajeú sorriu.

— O homem não é contra, é por-causa-de. Eu vi toda labuta sob o sol, névoa-nada e fome-de-vento. Entendem as coisas mar à nascente… tem tempo de plantar e tempo de colher. Se enterrar a vida, ela não seca. Ela brota.

— “A vida encontra um meio” — assenti. — Não, espera, todo mundo morre nesse filme também.

— Geração-que-vai, geração-que-vem, e a terra durando para sempre. O homem pode sufocar…

 Pajeú estendeu uma das mãos abertas. No centro dela, estava meu dente. A raiz esburacada guardava um pequeno broto verde.

— …, mas tudo o que vive encontra o caminho do sol.

Segurei meu rosto como se ele fosse cair. Finalmente, entendi. Eu sabia porque tudo aquilo estava acontecendo.


 

Mas o que eu podia fazer com aquela informação? Jogar nas redes sociais? Enviar para a prefeitura? Para a CIA? Decidi voltar para casa e planejar meus próximos passos cuidadosamente. Não era o momento de ser impulsivo, o destino da cidade estava em minhas mãos. 

Acabei pegando no sono.

Acordei no dia seguinte com uma batida na porta. Era a Nina.

— O que aconteceu aqui? — ela perguntou, entrando no apartamento sem convite. Sua expressão estava entre o nojo e o fascínio.

— Dor de dente — respondi. Então, a lembrança da noite anterior me atingiu como uma xícara de café.

— Nina! — exclamei, segurando seu rosto. — Eu sei o que tá acontecendo! Sei por que a natureza surtou!

— Então vamos — ela respondeu, se desvencilhando — ou a gente vai perder a parte boa.

— Quê?

— Ué, você não disse que sabia? — então, percebendo minha confusão, continuou: — A natureza não surtou, ela só precisava de algum lugar para escapar depois que a gente cobriu tudo com asfalto. O espírito do Pajeú contou para todo mundo.

— Contou?

— É, parece que alguém ouviu ele falando ontem e foi passar a história a limpo. Ele sabe tudo o que rola na cidade. Fofoqueiro fino.

Sentei na cadeira, sem acreditar. 

— Não acredito.

— Sério! Ele disse que não contou antes porque ninguém perguntou?! 

— Eu fui lá ontem. Falei com ele…

— Tá bom… — Nina respondeu, cética. — Pois vai se vestir, anda.

— Para quê?

— A gente vai libertar um rio.


 

Aparentemente, eu não era tão especial quanto havia pensado. Depois que a história do Pajeú circulou, a cidade inteira deduziu o que eu já tinha descoberto: os fenômenos começaram por causa da obra de aterramento na Aguanambi. Mais um rio seria transformado em esgoto e isso bagunçou os chakras da cidade, ou coisa assim. 

Por isso os espíritos haviam transbordado para a superfície. Não era bem uma possessão, mas um problema hidráulico. O prefeito se recusou a interromper as obras, alegando que não ia ceder às demandas de ecoterroristas. Além disso, a maior contribuição de sua campanha vinha das empreiteiras. 

A população não concordou e decidiu exercer seu direito democrático com marretas e martelos. Quando chegamos à avenida, uma multidão já se dedicava a destruir os enormes tubos de concreto destinados a prender o curso do rio. Depois que metade da cidade se transformou em jardins e pomares, as pessoas não queriam mais trabalhar tanto assim. Sobrava muita energia ociosa.

Nina correu na minha frente, se jogando no trabalho com entusiasmo. Chutei algumas pedras para não me sentir excluído, mas queria mesmo assistir ao espetáculo. Não fazia ideia do que seria a vida a partir dali. O que seriam dos hospitais, dos bancos e do aluguel que eu não pagava há dois meses. Na verdade, tinha quase certeza de que morar no meu apartamento, agora, configurava crime ambiental. Mas, naquele exato momento, nada daquilo importava. 

Antes que a população pudesse terminar o trabalho, a corrente do Aguanambi arrastou os últimos pedaços de concreto. O rio estava livre. Suas águas subiam ao céu e caíam como chuva sobre nós, que pulávamos e nos abraçávamos no elevado da avenida. Contra as gotas, podíamos ver a silhueta de seu espírito, manifesto em garoa. Estendia-se vasto, do tamanho da tarde. 

Lá embaixo, um Celta verde nadava ao sabor das águas a caminho do mar.



Márcio Moreira

Márcio Moreira é de Fortaleza, uma cidade irreverente. Ele publicou HQs como Sapacoco (com Débora Santos) e Sexta-Feira (com Talles Rodrigues), parte da antologia ganhadora do prêmio HQ Mix, com ‘Mayara e Annabelle: Hora Extra’. Seu primeiro romance, A Outra Máquina, foi publicado em 2022 pela editora Dame Blanche.

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